A linguagem é inerente ao ser humano e influencia em todos os âmbitos da vida. À medida que aprendemos outras línguas mudamos a forma com a qual enxergamos o mundo, pois novas palavras e expressões, com seus respectivos significados, são incorporadas ao nosso vocabulário. Assim, somos capazes de significar o que antes não era significado e ampliar as nossas perspectivas sobre a realidade, bem como adquirir uma nova forma de organizar o mundo.
Conforme a professora Leila Longo (2006), ao aprender uma língua, conhecemos como se organiza o campo de significações que ela reflete, tanto do indivíduo (campo da psicanálise) quanto de uma comunidade lingüística (campo da sociolingüística). Sob essa lógica, para a psicanálise, a nossa formatação como sujeito está mediada pela linguagem, ao passo que o sujeito se insere em uma ordem simbólica que o antecede.
Segundo Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, a lei é a expressão congelada de um tempo. Desse modo, ela é um recorte do período histórico-social e linguístico no qual foi feita. A Lei Maria da Penha, por exemplo, não foi criada antes da existência da expressão “violência contra a mulher”, porque, não havendo esse termo para designar tal situação, ela não era percebida socialmente como violência. Até que o conceito se tornasse comum, a realidade era vista, mas não era entendida.
Em seu canal no Youtube, a Drag Queen Rita Von Hunty apresenta um pensamento baseado nas ideias da professora Maria Elisa Cevasco:
“A realidade é subjetiva. A teoria é uma espécie de óculos que vestimos para ver a realidade. Dependendo do óculos que colocamos, conseguimos focar algumas coisas e desfocar outras, ver algumas coisas e deixar de ver outras. Precisamos nos instrumentalizar de mais e melhores ferramentas para dar cabo de decodificar a realidade, uma vez que a realidade não pode por si só ser experienciada.”
De acordo com Rita, a linguagem é uma ferramenta mediadora da realidade. Um exemplo cinematográfico disso é o filme “A chegada”, de Denis Villeneuve. Na ficção científica a linguista Louise Barks é procurada pela organização de inteligência norte-americana para decodificar a linguagem utilizada por extraterrestres que entram na Terra.

A maneira de se comunicar dos heptápodes era extremamente diferente de tudo o que a doutora já havia visto, o que exigiu muitos esforços para entendê-los e aumentou as chances de erro nas tentativas de traduções. Entretanto, ao passo que Louise foi identificando signos e compreendendo a nova linguagem, algo na sua vida foi se modificando. Para os alienígenas, o tempo não é linear, ou seja, passado, presente e futuro não constituem uma sequência ordenada, de modo que eles se misturam. Consequentemente, a linguagem deles se organiza da mesma maneira.
Dessa forma, ao absorver a composição linguística alienígena, Louise passa a perceber o tempo sem a linearidade e uma nova realidade, que para humanos é quase paradoxal, é criada: as memórias de Louise tornam-se, ao mesmo tempo, lembranças e previsões. Esse exemplo extremo da simbiose entre linguagem e percepção da realidade aponta como, de fato, o que entendemos como existência depende da nossa formação linguística.
Cito aqui um estudo do pesquisador Jules Davidoff que foi até a Namíbia, na África, para realizar um estudo com os integrantes da Tribo Himba. Ele fez um experimento no qual mostrava os cubos da figura abaixo e perguntava qual deles possuía cor diferente dos demais.

O resultado revelou que as pessoas dessa tribo não conseguem diferenciar as cores dos cubos, que para nós é clara, porque possuem, uma mesma palavra (buru) para as cores verde e azul. No entanto, por, talvez, uma necessidade relacionada à cultura, eles têm duas palavras para tons diferentes de verde. O mais claro é dambu e o mais escuro é zuzu. Nós, alheios a essa tribo, não conseguimos diferenciar os cubos com essas duas cores por não possuir nomes diferentes para as duas tonalidades.

Fica claro, pois, o ganho de visibilidade adquirido por meio da nomeação. Seguindo essa linha de raciocínio, é possível se atentar para a importância de dar nomes às pessoas e aos grupos excluídos socialmente, bem como a situações que não são percebidas. Algumas pessoas criticam o número de letras na sigla LGBTQI+ por separar pessoas em “caixinhas” rígidas, no sentido de que a característica “X” ou “Y” define a pessoa como parte de um grupo no qual ela não necessariamente se identifica.
Entretanto, a existência dos nomes que compõem a sigla confere visibilidade a cada um desses grupos e indivíduos. Antes da criação dos nomes, pessoas trans, por exemplo, não eram reconhecidas socialmente da maneira com a qual elas se identificam. O nome confere identidade e possibilita a aquisição de direitos, como aconteceu com a criação da Lei Maria da Penha após a percepção da violência contra a mulher, que só foi possível a partir da designação de uma expressão que cunhasse essa forma de violência. Isso também se aplica à aquisição do nome social por pessoas trans, pois a existência desse nome permite o (re)nascimento da pessoa trans da maneira como ela quer ser percebida socialmente, ou seja, o indivíduo é ressignificado.
Esses foram alguns exemplos e algumas discussões sobre a relação entre linguagem e percepção da realidade. Espero que tenham gostado e peço que opinem nos comentários.
Referências:
- Linguagem e psicanálise / Leila Longo. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
- Documentário “El Pepe: uma vida suprema”: https://www.netflix.com/br/title/81094074
- A realidade é subjetiva, de Rita Von Hunty: https://www.youtube.com/watch?v=kdHmy0_Rkcw
- Estudo de Jules Davidoff: https://www.gondwana-collection.com/blog/how-do-namibian-himbas-see-colour/
Autora: Joana Mendes
Que tema fascinante! 👏👏👏
Como uma boa leitora, fico feliz ao encontrar um texto que tenha essa habilidade de continuar conquistando minha atenção.
O título e a imagem de referência ao filme foram uma boa chamada – aliás, vou usar como recomendação para revê-lo. Foram várias as referências utilizadas e que enriqueceram a construção das ideias; o fio condutor continuou estável e não foi perdido.
Parabéns pela dedicação em lançar luz sobre algo tão diverso como a língua, mostrando que são necessárias várias realidades para compor o momento presente.
Gostei muito e continuarei acompanhando o blog! 😉 💜
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* língua/linguagem ✌☺
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Muito obrigada, Gabriela! Fico feliz por saber que gostou! Será uma honra continuá-la tendo como leitora!
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